Conhecimento

A legítima: proteção familiar vs. autonomia da vontade

A legítima protege os herdeiros legais, mas limita a liberdade de testar. Será tempo de repensar o equilíbrio entre proteção familiar e autonomia da vontade no Direito sucessório? Este texto de Bárbara Figueiredo responde.

23 de Junho de 2025

Artigo de opinião de Bárbara Figueiredo no Diário de Coimbra.

No direito sucessório português, a legítima representa a parte da herança que a lei reserva obrigatoriamente a certos herdeiros (os legitimários), independentemente da vontade da pessoa falecida. Este mecanismo visa proteger a família próxima — nomeadamente descendentes, ascendentes e cônjuge — garantindo-lhes uma quota mínima da herança, mesmo contra disposições testamentárias em sentido contrário.

Assim, e de acordo com o Código Civil, a legítima é indisponível: o testador apenas pode dispor livremente da parte disponível da herança. A legítima dos descendentes é de, pelo menos, dois terços da herança quando existam filhos ou netos. Na ausência destes, mas havendo ascendentes, a legítima é de metade. O cônjuge tem igualmente direito a uma parte da legítima, podendo concorrer ou não com descendentes ou ascendentes. 

Este modelo visa proteger os laços familiares e evitar situações de desamparo dos herdeiros naturais. No entanto, tem sido cada vez mais objeto de crítica ou, pelo menos, de questionamento. Trata-se, no fundo, de ponderar se esta proteção legal não constitui uma limitação excessiva à liberdade individual de cada um de nós dispor livremente do seu património, sobretudo em contextos familiares complexos ou conflituosos, em que o testador gostaria de dispor do seu património de forma diferente. E, não obstante a lei prever que, em casos excepcionais, previstos no artigo 2034.º do Código Civil, possa determinado herdeiro ser considerado indigno, a verdade é que as causas de indignidade se circunscrevem à prática de crimes particularmente graves

O debate em torno da legítima coloca, portanto, em tensão dois princípios fundamentais: por um lado, a solidariedade familiar e a função social da herança; por outro, a autonomia privada e o direito de cada indivíduo dispor livremente dos bens após a morte. Em certos ordenamentos jurídicos (nomeadamente os inspirados na common law), predomina a liberdade testamentária quase absoluta, com uma maior flexibilidade, mas também com casos de exclusão familiar extrema.

Em Portugal, apesar das dúvidas que vão surgindo, a estrutura da legítima mantém-se praticamente inalterada. Ainda assim, o certo é que a reconfiguração do conceito de família, com o aumento das famílias recompostas, das uniões de facto e das relações não convencionais, levanta novos desafios à rigidez do sistema.

A legítima continua, assim, a desempenhar um papel essencial na proteção dos herdeiros legitimários. Contudo, importa questionar se a sua intangibilidade absoluta reflete ainda adequadamente a diversidade das realidades familiares atuais. E essa tentativa de equilíbrio entre a proteção familiar e a autonomia da vontade (neste caso, do testador) poderá vir a determinar, num futuro mais ou menos próximo, uma alteração legislativa que permita a adaptação do Direito às exigências de uma sociedade em (constante) mudança.

Ser um Jedi do direito.