Conhecimento

Responsabilidade Civil Médica: entre o Público e o Privado

Carlos Vasconcelos e Bruno Martelo analisam implicações práticas e jurídicas da crescente litigância em saúde, num contexto de exigência, informação e mediação constantes

29 de Maio de 2025

Nota Informativa por Carlos Vasconcelos e Bruno Martelo

A relação médico-paciente, tal como a tradição, já não é o que era. Os cidadãos estão mais informados, mais esclarecidos, mais conscientes dos seus direitos e, consequentemente, mais reivindicativos. 

Por outro lado, os avanços tecnológicos e as repercussões que têm na atividade médica, trazem, a par com a miríade de benefícios que lhes estão associados – e que são sobejamente reconhecidos – uma série de novos desafios e exigências. A litigância, como a realidade o atesta, tem vindo a aumentar, pelo que é cada vez mais importante que todas as partes envolvidas – designadamente pacientes, profissionais de saúde, gestores hospitalares, entidades e instituições que prestam serviços, quer públicas, quer privadas – estejam cientes dos direitos que lhes assistem e dos deveres que sobre eles impendem, bem como das responsabilidades inerentes.

Assistimos, na verdade, à emergência de novas realidades que convocam o regime jurídico da responsabilidade civil médica, conferindo-lhe uma complexidade e atualidade acrescidas. As obrigações relacionadas com a obtenção do consentimento informado, a importância crescente do trabalho médico em equipa, o recurso à inteligência artificial, acrescentam ao assunto novas questões e novas perspectivas a que é necessário dar resposta, compatível com as mais modernas exigências.

Ora, ainda que com múltiplos pontos de contacto – e tendo como tronco comum o instituto jurídico da responsabilidade civil -, a verdade é que a responsabilidade civil médica apresenta diferenças significativas, consoante a relação seja estabelecida com uma instituição de saúde pública ou com uma instituição de saúde privada.

Na verdade, e sem preocupações de exaustividade, são vários os exemplos que se podem avançar em ordem a evidenciar essas diferenças:

– Vigora, entre nós, o entendimento de que a relação que se estabelece entre o utente e uma instituição de saúde que integra o SNS não tem na base um contrato, o que, consequentemente, conduz a que, perante situações de responsabilidade civil, seja convocado o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas;

– Pelo contrário, as relações que se estabelecem entre o utente e uma instituição de saúde privada são, à partida, tidas como relações emergentes de contrato, circunstância que conduz a que, nestes casos, o regime de responsabilidade civil aplicável seja – pelo menos, via de regra – o da responsabilidade contratual;

– Dessa divisão entre responsabilidade civil extracontratual/responsabilidade civil contratual emergem, depois, diferenças de monta, seja ao nível do prazo prescricional para exercício de direitos – que é de três anos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e de vinte anos no caso da responsabilidade contratual -, seja ao nível da presunção de culpa  que recai sobre o prestador do serviço que vigora no âmbito do sector privado e que, à partida, não incide sobre aqueles que prestem serviços no sector público, seja mesmo ao nível dos tribunais competentes para a apreciação dos litígios;

– Acresce que no sector público vigora a regra da responsabilidade exclusiva do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas cometidas com culpa leve. Significa isto, entre o mais, que os titulares de órgãos, funcionários e agentes apenas são passíveis de ser responsabilizados pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas cometidas com dolo ou culpa grave, tudo sem prejuízo da responsabilidade solidária da entidade pública e do direito de regresso que lhe assiste no caso de esse dolo ou culpa grave por parte do titular de órgão, funcionário ou agente virem a ser provados;

– No sector privado, pelo contrário, a responsabilidade pode recair, em qualquer caso, seja sobre a instituição de saúde, seja sobre o profissional de saúde, independentemente, portanto, de se estar perante ação ou omissão cometida com culpa leve, com culpa grave ou com dolo.

Em suma, no âmbito da responsabilidade civil médica, seja qual for a perspetiva por que para ela se olhe – designadamente na posição de utente ou de profissional de saúde -, não é indiferente que a relação se estabeleça com uma entidade pública ou com uma entidade privada. São, em múltiplas situações, diferentes as regras substantivas e processuais aplicáveis e a posição relativa das partes quanto ao exercício e ao modo do exercício dos seus direitos e cumprimento das suas obrigações. Conhecer e compreender as diferenças constitui requisito essencial para todos estarem mais esclarecidos e protegidos.

Ser um Jedi do direito.